‘Leonor’Uma história que poderiaser a tua!(II)

Compulsão AlimentarPsicologiaTratamento

Leonor Moreira, 36 anos, reside na Maia com o marido e o filho de dois anos, é economista. Desde os 20 anos sofre de transtorno de ingestão alimentar compulsiva – Compulsão Alimentar – mas desde que tem memória que desenvolve uma relação hostil com a alimentação. Filha de uma mãe muito rígida e exigente no que toca à alimentação (consigo e com a filha) e de um pai que não apresenta quaisquer preocupações com a alimentação e saúde. 

Procura ajuda não tanto por ela, “já me habituei a viver com isto”, mas por receio de não saber lidar com a alimentação do seu filho da forma mais salutar.

 

Boa tarde Leonor, como está?
Boa tarde! Durante a semana lembrei-me por muitos momentos da nossa consulta. Percebi que apesar dos meus desafios cabe-me fechar o ciclo. Só não sei muito bem como.
– Leonor na nossa consulta passada disse-lhe que tinha mais dois assuntos para abordar, mas lembrei-me de um outro relacionado com os tais alimentos a que chama “porcarias” – o papel da indústria no meio disto tudo!
– O papel da indústria?
– Sim. Sara como se sente quando não consegue comer só um quadradrinho de chocolate ou uma bolacha?
– Mal, impotente, fraca, desequilibrada.
– Era precisamente essa resposta que eu esperava. E agora pergunto, será que o problema é somente seu? Será que é justo considerar-se fraca?
– Óbvio, se eu tenho intenção de comer só uma bolacha e acabo por comer mais de quem é a culpa?
– Não estamos em nenhum tribunal e por isso não vamos aqui encontrar culpados. O que ganha em pensar dessa forma? Só aumenta os sentimentos de culpa e frustração. E se eu lhe disser que a indústria alimentar não tem interesse algum em que coma apenas um quadradinho de chocolate ou uma bolacha? E se eu lhe disser que desde que um produto é pensado até que sai para o mercado pode demorar um ano ou mais e há muitos profissionais envolvidos? E se eu lhe disser que não é só a Sara que tem dificuldade em ter esse controle precisamente porque o objetivo é que o consumidor compre cada vez mais?
– Percebo o que me está a dizer. Realmente nunca tinha pensado sobre isso. Como se fossemos vítimas do sistema.
– Mais uma vez não ganhamos nada em colocarmos isso nesses termos, mas ter consciência disso ajuda ou não a ter um olhar diferente para nós enquanto consumidores? Repito que não deve haver a dicotomia cognitiva do “posso/não posso”, “proibido/permitido”, “bom/mau”, e devemos nos permitir a comer de tudo, mas realmente há alimentos que requerem uma maior capacidade de auto-controle, mas o que gostaria que refletisse é que não é só para si. E depois Sara há outra questão à qual não me quero alongar muito agora que está relacionada com a microbiota intestinal porque efetivamente está tudo interligado.
– O que é isso?
– De forma bem simples microbiota são os microrganismos (fungos, bactérias, vírus) presentes no nosso intestino, o já tão famoso denominado ‘segundo cérebro’. A qualidade dessa microbiota vai ter influência até nas nossas emoções, imagine! Eu até me atreveria a dizer que seria o primeiro cérebro, mas não sou médica nem cientista, apenas uma curiosa destas matérias!
– Daí a importância de manter uma boa alimentação.
– Há uma série de fatores, e alimentação é um deles, o que não implica e friso muito esta parte que no seu caso passe pela restrição alimentar adotando o registo do “proibido/permitido”. Não se trata do alimento em si, mas da quantidade e frequência!
– Obrigada pela informação. O tal equilíbrio é o busílis da questão!
– Sei-o bem. Um passo de cada vez! Mas vamos lá retomar aos dois temas que estão em falta! Primeiro, o tão menosprezado sono e a importância de o respeitar tanto quanto possível (atendendo a que já não vivemos ao ritmo dos homens das cavernas). Fisiologicamente estamos programados para dormir à noite e ir desacelerando com o aproximar da noite. Quando se come muito à noite e a Leonor refere como momento mais crítico para si precisamente o pós jantar acontece que o repouso não será tão reparador porque a energia será gasta para se fazer a digestão e esse sono repousante não vai existir havendo também uma desregulação hormonal que se pode traduzir em aumento do apetite, por exemplo (desregulação da leptina e grelina) no dia seguinte e mesmo uma menor capacidade na gestão de impulsos, humor alterado, enfim uma série de alterações. Deixo-lhe esta informação de forma muito superficial, mas para perceber que realmente tudo está interligado e por vezes sente culpa de algo que fisiologicamente é muito mais difícil de contornar quando acontece. Ter consciência disto ajuda também a melhorar rotinas no que toca à hora de deitar e levantar. Existe ‘n’ informação relacionada com a higiene do sono que se for do seu interesse abordaremos aqui.
-Sabe? Já tenho um ritmo tão tardio instalado em mim que nem sei por onde começar. Nunca me deito antes da uma da manhã, é o meu tempo de lazer depois de um dia tão stressante e com tantos compromissos.
– Que giro Leonor, gosto de pensar sempre em mexer nas pontas, depois o meio fica mais estável. Terei todo o gosto em ajudá-la a refletir sobre algumas situações.
– Que bom, espero que seja para breve, bem preciso.
– Assim será! Agora para terminar, mas não menos importante, não poderia deixar de mencionar o ansiolítico menos valorizado do mundo – exercício físico. Já há evidência científica que realmente suporta a importância do exercício físico como parte de tratamento de depressão e ansiedade. Isso deve-se à libertação hormonal a quando do exercício físico que promovem bem-estar e também porque a capacidade de planeamento melhora muito. De forma bem simples para que compreenda melhor, o exercício físico vai favorecer a irrigação do córtex pré-frontal e também no hipocampo (formação de novos neurónios e memórias) o exercício físico terá o seu contributo fazendo com que nasçam mais neurónios eficientes, como se o exercício físico fosse fazer um up no funcionamento do nosso cérebro. Já para não falar dos restantes benefícios para a saúde. Por isso Leonor promover uma rotina mais ativa e que o seu filho também veja ou saiba que a faz poderá ser outro caminho complementar.
– Pois isso eu sei o problema é a falta de tempo, mal tenho tempo para os meus compromissos quanto mais ainda exercício?!
– Digo em tom de provocação, mas não me leve a mal Leonor, cuidar da sua saúde não poderá ser um verdadeiro e legítimo compromisso? Não tem 10 minutos que possa despender para começar. Apenas reflita sobre isso, não precisa responder.
– Tem toda a razão, mas é difícil mudar o ‘chip’.
– Leonor, estendemo-nos um pouco no tempo, mas parece-me que já leva daqui informação para refletir que lhe possa enriquecer a semana. Gostaria de fazer uma síntese ou aquilo que mais lhe tocou, desta e da consulta anterior, antes de terminarmos?
– Falamos de tanta coisa que parece que estivemos aqui uma tarde inteira. Prefiro dizer o que mais me tocou e que certamente estarei mais atenta durante esta semana.
– Com certeza!

Conclusão


– Não há alimentos proibidos e permitidos, as tais “porcarias” que tanto ouvi da minha mãe e que aquilo que a minha mãe, sem querer, me passou possivelmente foram as inseguranças que ela própria tinha em relação a ela. Que o facto de o meu pai me dar chocolates às escondidas veio reforçar essa mesma internalização de “pecar” ao comer essas coisas e que o prazer deve ser às escondidas por ser algo mau. Percebi também que posso e devo quebrar esse ciclo em relação ao meu filho fazendo diferente na hora da refeição e a forma como eu própria me posiciono em relação à comida. Por fim, sabendo nós que se trata de uma perturbação mental há situações que podemos dar mais voz e ter um papel mais ativo através do estilo de vida que adotamos e devemos fazer por estar mais conscientes, como por exemplo a boa qualidade do sono, exercitarmo-nos e de manusearmos melhor as situações emocionais adversas, como falamos na consulta passada.
– Leonor não acrescento nem uma vírgula. Confie em si! Estou deste lado!

Olá, sou a Maria Duarte

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